Combater a corrupção é estar sempre na linha de tiro, avalia juíza da 7ª Vara

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Mikhail Favalessa – RDNEWS



Com 20 anos de experiência no Judiciário, a juíza Ana Cristina Mendes está há nove meses à frente da 7ª Vara Criminal de Cuiabá, onde julga processos envolvendo o crime organizado e crimes contra a administração pública. Apesar do pouco tempo na atual função, a magistrada sente diariamente a pressão do cargo: “é estar sempre na linha de tiro”. A juíza recebeu a reportagem em seu gabinete no Fórum de Cuiabá, onde trabalha em ações e inquéritos como os das operações Rêmora, Seven, Assepsia, Fake Delivery, entre outras. Ana Cristina disse considerar que muito do trabalho feito no combate à corrupção é “jogado fora” por ações envolvendo nulidades, mas disse não ter receio desse tipo de recurso, incluindo os pedidos de suspeição. Ela descartou seguir o mesmo caminho de sua antecessora, a atual senadora Selma Arruda (PSL), na política. Ana Cristina busca o cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça no futuro. Sobre a recém-aprovada Lei de Abuso de Autoridade, a magistrada avaliou que pode haver uma restrição considerável ao trabalho dos juízes no combate ao crime organizado, em especial no que diz respeito ao bloqueio de bens dos criminosos.

Veja os principais trechos da entrevista:

A senhora atuou em outras Varas do Tribunal de Justiça nos últimos anos, com outros campos de atuação, e no início deste ano buscou a remoção para a 7ª Vara Criminal. O que a motivou a fazer essa mudança?

Eu sou uma apaixonada pela magistratura. Para mim, a magistratura é uma vocação. Eu trabalho há 34 anos no Poder Judiciário, são 20 anos de magistratura, então é um tempo de vivência aqui dentro, ao ponto de eu já conhecer muito bem todos os ramos, todos os caminhos aqui. Eu sempre tive uma admiração grande pelo trabalho da 7ª Vara Criminal. E sou movida a desafios. Na Vara de Violência Doméstica, quando nós começamos, foi um grande desafio o convencimento da Lei Maria da Penha, fazer conhecida a lei, aplicar a lei, mesmo a gente sendo chamada, volta e meia, por advogados e outros de não ter respeito à Constituição, de aplicar prisão para crime com pena menor que quatro anos, quando ainda nem se tinha o dispositivo do artigo 313 inciso 3. Então, era um desafio muito grande. Vencemos esse desafio, claro, com a ajuda de muitos colegas e todo o sistema de Justiça aliançado para isso. Nesse aspecto eu me apaixonei muito pela matéria da 7ª Vara, então vir para cá era mais um desafio. Eu fiquei dois anos e quatro meses fora das Varas, do trabalho jurisdicional de primeiro grau, estava substituindo no Tribunal de Justiça, e logo depois assumi dois anos de Corregedoria na gestão da desembargadora Maria Aparecida. E no final da gestão, a minha preocupação era para onde eu iria, porque era titular da 10ª Vara Criminal. E surgiu a remoção para a 7ª Vara, e eu não tive nenhuma dúvida, era realmente o que eu queria.

Assessoria TJMT/Alair Ribeiro

Ju�za Ana Cristina Silva Mendes

A juíza Ana Cristina Mendes, da 7ª Vara Criminal de Cuiabá, durante entrevista ao jornalista Mikhail Favalessa, em seu gabinete no Fórum da Capital

Em geral, os processos da Vara dizem respeito a dois tipos de organizações criminosas: aquelas relacionadas à corrupção, o chamado “crime de colarinho branco”, e às relacionadas à violência, tráfico de drogas e outros crimes, as facções criminosas. Com qual linha a senhora se identifica mais?

Todas as linhas, eu diria. Estudar a colaboração premiada, a lavagem de dinheiro, todo esse processo que nos mostra a possibilidade de combate a esses crimes, que nos dá a ferramenta para isso. Me encheu os olhos, realmente. Os dois combates… Quando você fala da organização criminosa voltada aos crimes de colarinho branco, é um desafio muito grande você combater, porque você vai sempre estar em uma linha de tiro, é sempre alvo de grandes críticas. Porque todo mundo tem razão, menos quem aplica a lei. Esse é o nosso país, infelizmente. Decisões políticas são aplicadas e acabam gerando problemas maiores ainda. E as organizações criminosas na questão das facções, que é um combate braçal. Um combate que nos deixa cansados, fadigados, porque você sabe que está lutando contra um grupo que é organizadíssimo. Sem dúvida, o crime é muito organizado. Quando você pensa que está pegando uma liderança, descobre que existem outras tantas que irão fazer o mesmo trabalho daquela pessoa.

E atuando no dia a dia com isso, existe a impressão de que não tem fim esse combate?

Eu ainda não tenho, não cheguei a essa sensação, nem gostaria de chegar. Porque aí seria o momento em que eu desistiria. Então, não. Eu acredito que é possível combater, sim. É preciso o uso da repressão, da estratégia de inteligência. Porquê? Porque eles trabalham com tecnologia, com inteligência, eles têm uma inteligência, realmente, para ludibriar qualquer sistema. Então, nós precisamos nos organizar melhor para conseguir por meio do sistema de Justiça estar além deles, à frente deles. Sempre nós nos descobrimos atrás. Quando a gente está no combate, a gente percebe que eles estão à frente, como diz o povo antigo… “quando você chega com a farinha, o bolo está pronto”. Nessa busca incessante, eu acredito ainda que nós precisamos crescer, mas estamos avançando.

Assessoria TJMT/Alair Ribeiro

Ju�za Ana Cristina Silva Mendes

A juíza Ana Cristina Mendes em um momento descontraído durante entrevista exclusiva ao Rdnews, em seu gabinete

Com relação às facções, vem sendo feito combate dentro dos presídios, com uma operação em curso na PCE. A senhora enxerga que a solução é por esse caminho?

Esse trabalho realizado pelo GMF e pela Sesp é fundamental para você, na linguagem popular, “quebrar as pernas” do trabalho que eles estão realizando. Se você tira o contato com a comunicação externa, tira o contato através do meio digital, do WhatsApp, você deixa os que estão do lado de fora sem as “grandes mentes” pensantes que estão lá dentro e fazem esse trabalho de liderança forte. Isso está dando resultado prático significativo. Os números, as estatísticas, mostram que houve queda na criminalidade e isso é importante. É um caminho. E quando digo precisamos buscar caminhos para combater o crime organizado, principalmente as facções criminosas, porque elas detêm uma tecnologia que muitas vezes… a polícia não tem um fuzil de última geração, mas a facção tem. O Rio de Janeiro está aí mostrando isso. Muitas vezes a polícia não consegue rastreá-los, nem monitorá-los de forma eficiente, mas eles conseguem saber até quando a polícia vai chegar. Então, estamos nesse caminhar. Avançamos muito, e é preciso dar a credibilidade ao trabalho feito pela Sesp juntamente com o GMF, estão fazendo um trabalho importantíssimo.

E como é feito o combate contra o financiamento desse tipo de crime também?

Esse braço financeiro, em todo o trabalho que envolve organizações criminosas, tudo aquilo que é angariado com busca e apreensão, faz-se as interceptações e consegue se chegar a carregamentos de droga, a valores, e tudo isso é tirado deles. Você está tirando o respaldo financeiro, e a gente sabe que tem muito dinheiro, é impressionante como tem dinheiro que é encontrado quando há busca e apreensão, rastreamento de contas também, nós sempre encontramos.

A antecessora da senhora na 7ª Vara Criminal, a atual senadora Selma Arruda, passou por todo tipo de pressão nessa função, com diversos pedidos de suspeição, alguns aceitos, e questionamentos em relação à atuação dela, por ser supostamente midiática. A senhora teme sofrer esse tipo de questionamento?

Em absoluto, não tenho temor nenhum. Eu acredito muito que as pessoas se utilizam de institutos do direito processual penal mais como jus sperniandi [direito de espernear ou o direito de reclamar]. Dá essa impressão, de que começa arguições incessantes de nulidades. Nós chegamos a um tempo no direito que o importante é a forma e não o conteúdo. Por que eu digo isso? Muitas vezes, na hora que se interceptou, fez busca, na hora disso ou daquilo, se descobre muita coisa, vem à tona toda evidência, indícios seríssimos de corrupção. “Ah, mas foi feito errado. Violou isso, violou aquilo”. E aí não importa, apaga tudo. Aí eu te pergunto: o que fazemos com o que ficamos sabendo? Nada? Mas isso é o nosso sistema de Justiça. Esse é o nosso país. Esse é o nosso Código de Processo Penal, que permite muitos recursos e muitas formas que levam a nulidades que jogam fora todo um trabalho feito, trabalho que traz à evidência muita coisa. Mas anula-se tudo, aí temos o instituto da prescrição, não se pune. Esse, infelizmente, é o lado que temos da impunidade no nosso país. Mas eu não tenho receio. Como eu me pauto na minha vida, e não acredito que a colega tivesse medo disso ou coisa assim, mas eu levo a minha vida.

 Mas toma alguma medida para evitar essas situações?

No meu trabalho eu procuro ser imparcial. Eu trabalho de acordo com a lei, com os princípios, a jurisprudência e a doutrina. O que é, é, e o que não é, não é. Se há um indício, é preciso que se investigue, certo? Eu não posso ignorar aquele indício. Nulidades, eu preciso que você me prove que isso trouxe prejuízos. Só alegar nulidade porque é nulo, pronto e acabou, não. Então, não tenho preocupação nenhuma em trabalhar da forma como trabalho. Eu prefiro que as pessoas conheçam meu trabalho e, quando falar de suspeição, fale do trabalho que eu fiz, da decisão que eu tomei. É tudo que eu preço, que analisem a minha decisão. Se ela não for suficiente para explicar o que eu quis dizer, então ela está mal escrita.

Assessoria TJMT/Alair Ribeiro

Ju�za Ana Cristina Silva Mendes

A juíza Ana Cristina Mendes fala sobre o trabalho realizado na 7ª Vara Criminal de Cuiabá, em que atua desde janeiro

E o juiz está no mundo real, né?

E também porque eu me baseio naquilo que tenho de provas. Eu sempre vou citar aonde eu encontrei aquilo, aonde eu olhei aquilo. Agora, infelizmente se na investigação o que veio não é suficiente, lá na frente a gente vai conseguir provar isso porque, graças a Deus, existe a instrução processual.

A senhora já sofreu algum tipo de ameaça desde que passou a atuar contra o crime organizado? Toma algum cuidado a mais nesse sentido?

Não. Meu esposo é meu segurança. Ele cuida de mim, eu sou bem cuidada.

Tivemos recentemente aprovada a Lei de Abuso de Autoridade e entre os trechos não vetados está aquele que prevê punição a juízes que determinem bloqueio de bens acima do volume suficiente para saldar a dívida do processo. Como juíza que determina medidas desse tipo contra as organizações criminosas, a senhora enxerga prejuízos na atuação em razão da nova lei?

A Lei de Abuso de Autoridade, salvo melhor juízo, é uma lei que veio com um intuito muito claro de mitigar a atuação judicial. Esse artigo especificamente nos deixa em uma situação delicada. Outrora, se você falava de um prejuízo na monta de R$ 1 milhão, você fazia uma busca através do sistema Bacenjud nas contas que aquela pessoa tinha, e era em todas as contas. Hoje, eu não posso fazer isso porque eu posso mandar fazer em todas as contas e bloquear muito mais que um R$ 1 milhão. Aí eu estaria sendo responsabilizada. Vai restar aquela coisa da indicação. O Ministério Público, como autor da ação, no momento em que ele pedir a indisponibilidade de valores, ele vai ter que indicar uma conta específica. Na medida em que ele indicar e a gente encontra nessa conta um valor inferior, ele nem precisa indicar as outras, porque elas com certeza estarão zeradas. A partir do momento que você atuar em uma, as outras serão zeradas. Mas, é o que tem pra hoje. Eu vejo nela alguns aspectos extremamente subjetivos, análises bastante subjetivas. Isso é ruim, o Direito Penal não é assim, é preciso que se tenha ações concretas e objetivas. “Fazer isso”. No nosso caso, quando você fala em abuso de autoridade, vai ser uma análise bastante comportamental. Isso não existe, mas fazer o quê. Vamos ter que nos adequar a esse tipo de situação. Eu vim para a magistratura com um aspecto dentro de mim muito gritante, eu tenho uma ideologia de Justiça, de Direito, de aplicar as leis. O juramento que foi feito na nossa posse é algo que ainda grita: aplicar as leis, os princípios, a doutrina, a jurisprudência. É isso que nós vamos fazer. Se por isso entrar em rota de colisão com algum desses artigos, eu só vou saber no meu futuro. Não posso garantir agora qual será o meu comportamento. Eu não diria que não vou mandar prender, não vou decretar a indisponibilidade, ou não vou fazer isso. Por ora, não. Se necessário, talvez sim. Então eu prefiro esperar para ver como nós, magistrados, vamos nos adaptar em relação a isso. Sem que sejamos nós os alvos das investigações, prisões ou processos administrativos. Nós trabalhamos sério, a magistratura trabalha sério, ao contrário do que as pessoas pensam e falam.

E ainda em relação à sua antecessora, que foi para a política partidária depois de atuar na 7ª Vara Criminal, como a senhora vê o futuro? Deve seguir o mesmo caminho? A senhora, recentemente, se inscreveu para ser conselheira do Conselho Nacional de Justiça…

Eu com certeza continuo na 7ª Vara, mas como todo magistrado, ou pelo menos a maior parte deles, o meu desejo é o desembargo, não tenha dúvida disso. Conhecer o trabalho do CNJ como conselheira é um sonho… Ser ministra deste país também é um sonho, porque não seria? Mas, sobretudo o desembargo, que é o ápice da nossa carreira. Nós lutamos todos esses anos para isso, então é muito natural que queiramos chegar ao desembargo. Eu amo o que eu faço, eu amo a magistratura, aqui é o meu lugar. Um país sem ordem, um país sem Justiça, sem valorização dos direitos humanos, sem o direito de ir e vir, de o cidadão ter saúde… Ele não tem como progredir. Se a corrupção não for combatida não tem progresso, nós vamos cair em uma vala horrível de morte, de fome, de miséria, de saúde pública de péssima categoria, e a 7ª Vara é uma vara que trabalha nesse combate à corrupção de forma ferrenha. É o nosso trabalho e, isso é o mais importante, eu acredito nesse trabalho.

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